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O Brasil urbano e o desastre o grande capital

Philip Yang

VALOR ECONÔMICO - 11/02/2019

Nos dez últimos anos, projetos imobiliários em escala urbana tornaram-se verdadeiros pesadelos para o mercado de capitais. As perdas acumuladas no período somam bilhões de reais e envolveram nomes consagrados do setor financeiro e imobiliário. Os fracassos foram traumáticos para a comunidade de investimento e as consequências serão sentidas por anos à frente. Ante tantos insucessos, gerou-se entre investidores qualificados verdadeira aversão a oportunidades de investimento em projetos urbanos complexos. Ou seja, o grande capital foi afugentado dos projetos de grandes escala nas cidades brasileiras.

 

A lista de malogros é conhecida no setor. Inclui, entre outros, investimentos em companhias e projetos como o Parque Global, a Cipasa, a Scopel, o Parque da Cidade, o Porto Maravilha. Não vem ao caso analisar aqui os detalhes de cada um dos insucessos. Para fins de debate público, no entanto,  vale listar alguns dos fatores que redundaram nesse conjunto representativo de insucessos - momento errado de entrada ou saída do investimento, projetos equivocados, problemas de gestão e governança, localização ruim, desalinhamento entre expectativa de crescimento do capital financeiro versus a natureza de crescimento orgânico do setor imobiliário, a falta de uma regulamentação justa de distratos, insegurança jurídica e, não menos importante, o travamento de projetos por problemas com aprovações e licenças junto ao poder público.

 

Tal fato nos importa como sociedade urbana? Qual será a consequência para o Brasil dessa fuga de capitais?  

 

A concepção e execução de projetos imobiliários em escala urbana constituem a última fronteira de possibilidades para a redução das grandes assimetrias territoriais que marcam nossas cidades: a distância entre trabalho e moradia; a desproporção entre o verde e o cinza; o contínuo espraiamento que coloca em risco nossos mananciais. Se o empreendimento imobiliário em escala urbana continuar a se revelar um péssimo negócio, o mercado imobiliário seguirá fazendo o que faz, construindo a cidade de forma fragmentária, em terrenos menores, em projetos de complexidade mais baixa, que olham apenas para dentro, sem vinculação com o entorno. Com a ausência do capital privado em projetos estruturantes, teremos certamente tecidos urbanos piores.

 

Estamos portanto diante de um fracasso coletivo - perdeu o mercado e perdeu a sociedade. Se o padrão permanece, perde o capital financeiro - e perde, também, e muito, a cidade.

 

Os liberais empedernidos terão atribuído culpa à legislação excessivamente complexa ou a regulação indevida ou, numa crítica mais rósea, terão visto no longo ciclo de recessão o maior vilão desses grandes projetos. O plantel de esquerda terá observado o fenômeno com sarcasmo e, com um sorriso de canto de boca, terá visto no tombo um bom castigo àqueles “diabos, especuladores capitalistas”.

 

Em tempos de polarização, não devemos ceder a simplificações e maniqueísmos. Uma grande cidade se faz com a construção de interesses comuns entre forças de mercado, de governo e da sociedade. E o que temos hoje é uma postura de guerra entre o setor público, privado e cívico no âmbito dos grandes projetos imobiliários.

 

É lugar comum dizer que nossas cidades pioraram nos últimos anos. O trânsito está mais lento, há mais moradores de rua, mais crime, violência e poluição. Vivemos a chamada tragédia dos comuns, alegoria clássica das ciências sociais que descreve a situação em que indivíduos ou grupos, ao agirem racionalmente e movidos unicamente por interesse próprios, acabam minando a possibilidade de atingirem objetivos maiores de interesse comum a todos.

 

O setor imobiliário é movido por interesses legítimos, mas setoriais e privados. O urbano é, por definição, um projeto mais amplo que precisa tornar as cidades um vetor de eficiência produtiva e enfrentar os conflitos sociais que estão na raiz da nossa condição urbana. Reguladores, investidores e comunidades de bairro só superarão o dilema entre o interesse privado e o coletivo se deixarem de atuar de forma adversarial. Ocorre que, tipicamente, grupos de pressão atuam de forma crítica apontando apenas problemas, e não as soluções. Órgãos de controle, a academia, grupos de bairro e reguladores atuam com extrema desconfiança do mercado. O resultado é claro: as forças de travamento são mais fortes do que as de avanço. Ou, pior, obtém aprovação apenas os projetos ordinários, menores, num momento em que o Brasil urbano mais precisa de inovação e ousadia para que os desequilíbrios sócioespaciais possam ser reduzidos.

 

A boa notícia é que dispomos hoje de diversas ferramentas no âmbito das concessões e PPPs que podem mitigar o enorme impacto dos ciclos econômicos e flutuações de demanda, bem como ajustar taxas de retorno de modo a torná-las compatíveis ao perfil de risco dos empreendimentos. Regras de estruturação de projetos em nível municipal como as que são aplicáveis aos chamados Projetos de Intervenção Urbana (PIUs) em São Paulo, se usadas com inteligência, permitem que grupos em conflito possam atuar com vistas à superação de impasses e diferenças. Em suma, nos falta apenas o elemento volitivo, do querer avançar, coletivamente, na construção de uma cidade melhor.

 

Talvez um passo adicional no plano administrativo seria a criação de uma central que, como num balcão único, pudesse gerenciar todo o processo de aprovação dos projetos imobiliários em escala urbana, centralizando e coordenando de forma transparente as diferentes ações aprobatórias nos âmbitos fundiário, ambiental, construtivo, etc.

 

Nossos fracassos anteriores podem e devem ser evitados e corrigidos. Regras, instituições e a sociedade podem sofrer aprimoramento contínuo e tornar a formação de consensos uma possibilidade real.  Exemplos mundo afora como a LX Factory (Lisboa), Nuevo Polanco (Cidade do México), Station F (Paris), Hudson Yards (Nova York), entre outros, mostram que o capital privado investe em projetos de grande impacto coletivo quando a moldura regulatória favorece a construção de uma convergência de interesses.

 

Grandes projetos urbanos não deveriam tornar-se traumas ao grande capital nas cidades que, em última análise, são o Brasil da maioria - tanto social quanto do produto econômico.

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