O complexo do Ibirapuera e
a ‘guerra fria’ em São Paulo
Tentativa de privatização do equipamento esportivo evidencia as contradições de duas visões de mundo que a história já nos fez superar – o ultraliberalismo e o intervencionismo estatal
Nexo Jornal
5 de janeiro de 2021
Philip Yang
‘A privatização de um bem público eviscera as contradições de duas visões de mundo que a história já nos fez superar.’ Leia no ensaio do empreendedor urbano Philip Yang.
Meu telefone ficou menos silencioso ao longo da semana. Amigos de espectros opostos começaram a ligar intermitentemente para expressar alegrias, queixas, dúvidas ou indignação quanto ao processo tentativo de privatização do Complexo Ibirapuera. "O que vai acontecer?"; "É certo o que o governo está fazendo?"; "Você é contra ou favor?" A polêmica se exacerbou com a decisão do Tribunal de Justiça em favor da ação popular que solicita a suspensão do processo de concessão do Conjunto Esportivo Constâncio Vaz Guimarães, cujo Edital seria publicado ainda este mês.
Confesso que dei respostas diferentes para cada interlocutor. Conforme o grau de perplexidade, ira ou contentamento que eu percebia do outro lado da linha, minha argumentação caminhava para ângulos e modulações diferentes, não necessariamente congruentes entre si. Correndo o risco de fazer uma simplificação indevida de um tema complexo, tento aqui oferecer uma certa sistematização do que está em jogo, organizando um pouco mais as minhas tantas dúvidas e poucas certezas em relação ao tema.
A controvérsia pode ser resumida às seguintes questões principais. O Complexo do Ibirapuera (que envolve, além do Ginásio Poliesportivo, o Estádio de Atletismo e o Parque Aquático) sofre há anos com a falta de investimento, desatualização tecnológica, degradação física, subutilização e abandono. O governo do Estado de São Paulo busca a reversão desse quadro mediante a concessão do equipamento público a ente privado. O governo do Estado imagina que a gestão privada será capaz de rentabilizar o espaço e, partir dessa perspectiva de remuneração, investir na modernização do complexo e garantir a sua fruição. O processo de privatização gera temores de que sua principal função, a de um complexo esportivo público, seja desvirtuada.
Decorrem desse processo duas grandes interrogações.
A primeira tem a ver com a possível demolição do Ginásio do Ibirapuera. O edifício tem algum valor histórico-cultural e arquitetônico, difícil de ser mensurado. Qual o valor simbólico que o complexo carrega para a nossa identidade coletiva? O ginásio é representativo do que somos? Por outro lado, a desatualização e declínio físico de equipamento público tão importante não compromete nossa imagem e a maneira como nos projetamos no futuro como cidade? Afinal, o que é melhor: mantermos um bem público como monumento do passado, disfuncional e corroído; ou o transformamos num equipamento privado renovado, útil e cheio de vida? A associação entre público “velho” e privado “vivo” pode ser tendenciosa e polarizadora e a escolha não precisa ser tão binária, conforme procuro argumentar ao final. Londres não derrubou uma lágrima quando o estádio de Wembley veio abaixo em 2003 para dar lugar ao novíssimo Wembley. Já Nova York chorou a perda da velha Pennsylvania Station, destruída para a construção do Madison Square Garden. Tudo é muito relativo. Para São Paulo, uma cidade predominantemente do século XX, talvez o Ginásio do Ibirapuera esteja simbolicamente mais próximo da Penn Station do que de Wembley.
A segunda interrogação tem a ver com o acesso público de um bem estatal tornado privado. Quando um espaço é gerido pela iniciativa privada, a busca de rentabilização de cada metro quadrado faz com que o acesso a esse local se torne de alguma forma mais restritiva, menos inclusiva. Uma parte dos leitores aqui não se importa ou sequer se deu conta de que pagou R$ 10 reais por uma garrafa de água em algum espaço público gerido pela iniciativa privada como os terminais de aeroportos concessionados ou estádios de futebol "arenizados". Tampouco se dão conta de que uma boa porção do dinheiro pago pela água não fica com o dono da lanchonete, pois parte substancial de suas receitas acaba sendo capturada pelo concessionário na forma de aluguel. Porção majoritária da população é sensível a uma água a R$ 10 reais e deixará de frequentar determinados lugares se a cesta de produtos ali disponível não for acessível e determinar uma frequência socialmente seletiva. A pergunta cínica do liberal radical viria de forma automática: é melhor ter um espaço público jogado às moscas ou uma concessão privada que funcione bem, ainda que de forma excludente? Mas no caso do Ibirapuera, a questão central é a seguinte: perderemos a sua função de complexo esportivo público? Qual é o risco de, com a privatização, expulsarmos dali atletas, programas educacionais e praticantes de esporte, condenando-os a buscar alternativas em clubes de acesso restrito ou em pouquíssimas outras instituições públicas da cidade?
Aqui vão minhas sugestões sobre esses dois temas, que faço a partir da leitura dos documentos divulgados pelo governo no processo de consulta pública. Para a estruturação de um projeto de infraestrutura, o governo tem três alternativas. Pode (i) realizar as modelagens com equipe interna; (ii) solicitar a interessados do setor privado que ofereçam, sem remuneração, os estudos técnicos, facultando aos ofertantes a possibilidade de participarem da concorrência que levará à concessão ou (iii) contratar estruturador de projeto no mercado, remunerando-o comercialmente e vedando-lhe a possibilidade de participar da concorrência do bem em questão. O Estado adotou uma curiosa mistura das três alternativas e produziu um resultado que deixa a desejar nas dimensões técnica e política. Como comentário geral, a minuta de edital é frágil e insuficientemente multidisciplinar. A ausência de critérios no âmbito operacional, urbano-espacial e histórico-cultural evidenciam a falta de robustez do chamamento. A ampla movimentação pública contra a concessão é portanto sintomático da inconsistência geral do chamamento.
Os seguintes problemas que, tivessem sidos adequadamente abordados no processo de estruturação pelo governo do Estado, não teriam causado tamanha fúria, impasse e polarização:
1. Descoordenação e corrida para o abismo. A capital financeira do hemisfério sul apresenta forte vocação, já consolidada, para a indústria do entretenimento, além de grande potencial de evolução com o desenvolvimento do Complexo Anhembi, que está também em processo de concessão, pela prefeitura. A possibilidade de que São Paulo venha a ter grandes espaços concessionados (um estruturada pelo governo municipal no Anhembi e outra desenvolvido pelo Estado no Ibirapuera) demonstra ausência de coordenação entre as duas esferas de governo e faz com que o perfil de risco de um e de outro projeto aumente aos olhos dos potenciais concessionários. A concorrência, sempre saudável, deveria se estabelecer “entre destinos” (e não internamente) e os diferentes espaços deveriam ter sua vocação induzida de modo a atrair diferentes usos e segmentos. Caso as duas concessões avancem, a inexistência de um calendário esportivo que apresente número de eventos suficiente para sustentar dois locais de dimensão e natureza semelhantes pode resultar numa luta deletéria, uma corrida para o abismo ("a race to the bottom") que nivelará por baixo a qualidade dos espaços.
2. Ausência de critério operacional. Os estudos e modelagens que fundamentam o chamamento contemplam a implantação de uma arena com capacidade para 20.000 pessoas. Estranhamente, o modelo não faz exigência de qualificação técnica na gestão de espaços dessa natureza, o que em tese abre a oportunidade para aventureiros sem qualquer experiência no setor, hipótese essa que pode tornar a cadeia de valor da concessão mais onerosa e com impacto no custo final para o público usuário. Em uma palavra: quanto mais onerosa a concessão mais excludente será a sua fruição pública. E o caderno de encargos não garante que as atividades atléticas e o calendário esportivo nacional que necessita de subvenção para prosperar estejam protegidos.
3. Descoordenação (de novo) e ausência de diretrizes urbanas. Não há no Edital referências às questões de acesso e de vizinhança, temas extremamente complexos no Ibirapuera, dado que a região já é sobrecarregada. O Edital tamouco conta com a necessária previsão de preparo do equipamento para a sua conexão com a futura linha 19 do metrô prevista para a região. A ausência de coordenação entre governo municipal e estadual torna-se mais uma vez evidente quando se verifica que a proposta de Projeto de Intervenção Urbana (PIU), requisito do Plano Diretor para a região, não está devidamente concatenada com a proposição de equipamento do porte do complexo pretendido. O PIU está sendo desenvolvido com a perspectiva da concessão. No afogadilho e a reboque. Deveria ser o contrário: primeiro os estudos sobre o valor cultural do patrimônio existente, depois os estudos urbanos para o futuro da área e, ao final, a modelagem da concessão.
4. Descaso com o valor simbólico do Ginásio. O valor arquitetônico e cultural é um tema altamente controverso. Há aqueles que acreditam que a disfuncionalidade atual do equipamento demanda sua demolição, inclusive por razões de custo (seria em tese mais barato demolir do que reformar) e, no outro extremo, os que defendem a sua preservação e renovação como parte da memória cultural da cidade. A questão é polêmica e a única linha que não poderia ser adotada foi exatamente a que o governo do Estado seguiu: a de fingir que a questão não existe. Pior ainda, o governo do Estado buscou ativamente suprimir a análise técnica dos méritos do tombamento pelo CONDEPHAAT, fazendo com que a população recorresse ao CONPRESP, em ação popular que promete agora travar o processo.
A privatização de um bem público eviscera as contradições de duas visões de mundo que a história já nos fez superar. Defensores do Estado mínimo esquecem que é o Estado que precisa arbitrar os grandes conflitos a partir de suas instituições; no caso, o CONDEPHAAT e CONPRESP. Por que evadí-los? Aos amantes do intervencionismo estatal, vale lembrar que as forças do mercado são essenciais para o avanço civilizatório e, quando bem reguladas, podem ser capazes de entregar mais do que as burocracias estatais. Nem o varre-tudo ultraliberal, nem o tomba-tudo estatal… Concessão não é necessariamente contraditória com o tombamento e vice-versa. Combinar atratibilidade, rentabilidade, acessibilidade ao grande público e serviços de primeira linha é algo factível – quando tivermos a necessária competência política na condução do processo.
Philip Yang é fundador do Instituto URBEM
PS1 Vale lembrar que em 2003 o governo do Estado promoveu concurso de soluções para o complexo, vencido por projeto de grandes méritos assinado por Hector Vigliecca. Temos aqui mais um caso de grande desperdício de recursos ao se começar tudo do zero, como está se fazendo nesse momento. Concursos públicos são complementares e interessantes quando comparadas a concorrências de concessão, em que se julga primacialmente os critérios econômicos como a outorga e taxa de retorno, deixando-se de lado questões urbanas, sociais e históricas de lado.
PS2 Pergunta que não quer calar: por que não realocar os imensos quartéis que definitivamente não precisam estar ali para fazermos dessa área tão querida de todos algo realmente útil pela cidade?