A Quadra entrevista Philip Yang
por Judite Scholz
D E Z E M B R O 2 0 2 3 / J A N E I R O 2 0 2 4 - N O 3 6 - A N O V I
1. Dada a demasiada quantidade de prédios, você acredita que o Plano Diretor (2014) foi favorável às forças de mercado em detrimento das propostas de urbanistas e da sociedade?
PY: De uma maneira bem resumida, eu diria que, em muitos sentidos, houve uma convergência entre urbanistas e agentes de mercado na redação do PDE de 2014. Ambos favoreceram a verticalização, com algumas divergências quanto ao tamanho dos apartamentos. Urbanistas em geral favoreceram unidades menores para que mais famílias pudessem ocupar as áreas ricas em infraestrutura, enquanto incorporadores à época queriam garantir a possibilidade de construir unidades maiores e com direito a mais vagas de garagem. Em termos mais técnicos, os urbanistas queriam garantir maior densidade populacional e o mercado queria mais liberdade para garantir maior densidade construtiva. Creio que ao final, o Plano Diretor de 2014 é uma síntese dessas preocupações e interesses.
Entre erros e acertos nos detalhes, São Paulo viveu um boom construtivo de prédios sem precedentes depois da vigência deste plano diretor. O mercado incorporador não pode reclamar dos resultados alcançados e os urbanistas de maneira geral ficaram satisfeitos com os resultados alcançados. Foi a composição possível de pressões e contrapressões que vieram à tona nas negociações do PDE e os ajustes virão com o tempo.
2. Você acha justa a decisão preliminar do Conpresp de um estudo de tombamento de alguns pontos de Pinheiros?
PY: A decisão do Conpresp coloca em evidência a tensão entre visões e interesses que, com maior ou menor grau de legitimidade, estão em rota de colisão. De um lado, você tem moradores que querem preservar a memória e a ambiência do bairro. Você tem também os chamados NIMBYs, moradores que simplesmente querem proteger privilégios particularistas, em detrimento dos interesses mais amplos da sociedade. Do outro lado, você tem alguns urbanistas que acreditam que adensar bairros como Pinheiros é mais importante do que preservar sua memória. E, claro, você tem investidores e incorporadores que estão ávidos por obter mais terrenos livres para os seus projetos.
A decisão preliminar do Conpresp abrange centenas e centenas de imóveis em Pinheiros. É natural que, em algumas situações, o tombamento seja mais justificável do que em outros. É preciso examinar caso a caso, ou ao menos, estudar os contextos das áreas em questão.
Prezo muito a história e a ambiência dos bairros e, em contextos em que o valor da memória é significativo e os imóveis em questão estão em uso, o tombamento pode ser justo. Nos casos em que os imóveis estejam desocupados e degradados, às vezes é válido pensar em regras mais flexíveis de uso, que permitam que o imóvel seja preservado e ao mesmo tempo reformado e adequado a demandas que garantam a sua efetiva utilização. E há casos em que a preservação é nitidamente um erro.
Prezo também a estabilidade das regras e, para que caminhemos na direção de maior segurança jurídica, acho importante que empreendedores que realizaram investimentos sob determinadas regras sejam devidamente indenizados caso essas regras sejam mudadas.
3. Do ponto de vista urbanístico, São Paulo tem jeito? É possível revitalizar uma cidade como São Paulo?
PY: Acho que sim, São Paulo tem jeito sim. Estamos vivendo hoje um processo de transição digital e energético-ambiental que descortina uma série de novas oportunidades para buscarmos um novo ordenamento espacial para a cidade, para encontrarmos uma maneira de organizar os territórios de modo mais equilibrado e mais justo. Discordo apenas do termo "revitalizar". A cidade já tem vida, e muita. O que é necessário é buscarmos "requalificar" o território, melhorando a paisagem, promovendo a mobilidade e a caminhabilidade, reduzindo o déficit habitacional, combatendo a desigualdade espacial e oferecendo mais segurança e espaços públicos de qualidade a todos.
Projetos, públicos ou privados, não nos faltam. Investidores privados precisam estar mais abertos à inovação e menos avessos a riscos e novidades. Governos precisam de lideranças capazes de superar as imensas dificuldades trazidas por regulações complexas e anacrônicas. Não é fácil, mas é possível.
No contexto dessas duas transições estruturais, o aumento da desigualdade e da violência são dois dos problemas centrais que se agravaram hoje em São Paulo. Precisamos de criatividade, capacidade e coragem para superá-los. Aproveitando o contexto das novas ferramentas que surgem na gestão dos territórios, é imperativo que os paulistanos reajam e provem que São Paulo tem jeito.
4. Você acredita que ainda veremos hidrovias urbanas, com barcos no lugar de carros e caminhões?
PY: Seria uma maravilha, não é? Anos atrás, vi uma apresentação do projeto de Hidroanel Metropolitano, proposto pelo arquiteto da USP, Alexandre Delijaicov. O projeto visa a integração dos rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí numa rede de transporte e lazer, que nos traria uma alternativa sustentável de mobilidade de pessoas e de cargas, além de estimular a criação de áreas de lazer nas margens dos rios. Depois de ver o projeto, me convenci de que seria possível termos hidrovias urbanas.
No entanto, os anos passam e os obstáculos parecem prevalecer sobre a ideia. Nos falta um regime de governança metropolitana. A hidrovia nos demandaria um planejamento integrado que envolve várias cidades e o governo do Estado. Entendo que a criação de uma agência de navegação, com mandato específico para a viabilização do hidroanel, talvez pudesse garantir um foco constante e responsabilidade clara, e assim ser mais eficaz na mobilização dos recursos financeiros, humanos e técnicos necessários.
5. Qual seu sonho para São Paulo?
PY: Tenho três sonhos para a cidade: um de forma, um de conteúdo e outro de processo.
No plano da forma, meu sonho tem a ver com uma cidade mais organizada, segura, limpa, com suas pontes, viadutos, edifícios e monumentos mais importantes bem mantidos. Na paisagem, minha São Paulo ideal seria uma cidade com calçadas perfeitas e homogêneas, feitas todas com um mesmo material, e sem percalços para o pedestre. Nessa miragem urbana, calçadas e pavimentos estariam no mesmo plano. Há duas maneiras para se fazer isso. Veja estas imagens. Ou rebaixaríamos todas as calçadas para o nível do pavimento, como fizeram em várias ruas no Japão (fotos 1, 2 e 3). Ou então elevaríamos o pavimento das ruas para o nível das calçadas, como fizeram em cidades na Espanha (fotos 4, 5 e 6).
Foto 1, © Dreamstime
Foto 2, © Instituto URBEM
Foto 3, © Instituto URBEM
Esses espaços, um plano contínuo entre ruas e calçadas, seriam compartilhados entre carros, ciclistas e pedestres a pé, em patinetes, patins ou outros transportadores individuais como hoverboards ou segways. Em avenidas mais movimentadas, as faixas para ciclistas e pedestres seriam protegidas. Os novos pavimentos seriam feitos de materiais porosos para melhorar a drenagem e mitigar as inundações de verão. Muitos bairros, em regiões centrais ou periféricas, possuem calçadas estreitas e leitos carroçáveis desnecessariamente largos. É hora de alargar as calçadas, torná-las mais permeáveis e verdes e mais caminháveis.
Foto 4, © Michelle Castrezzati
Foto 5, © Michelle Castrezzati
Foto 6, © José César Martins
No plano do conteúdo, amaria ver uma cidade com uma rede de transporte público tão mais abrangente, que as pessoas acabassem escolhendo o transporte coletivo sobre o individual. Uma cidade com uma oferta habitacional mais acessível, que misturasse e integrasse e promovesse o convívio entre pessoas de diferentes faixas de renda. Uma cidade em que os espaços públicos fossem atrativos o suficiente para congregar a população toda, indistintamente. Seremos uma comunidade, na medida em que formos capazes de compartilhar um passado, um presente e um futuro comum. Se estivermos muito segregados territorialmente, essa visão de um destino compartilhado será mais difícil de se construir. Uma cidade também que, nesse momento de transição digital (que vai gerar muito desemprego), multiplicasse seus núcleos de formação e de treinamento técnico-profissional, em todas as regiões, para que as novas e antigas gerações possam se manter produtivas na nova economia.
E no plano do processo, queria ver uma cidade em que as políticas fossem definidas de forma mais transparente, onde não houvesse jamais espaço para corrupção ou para a captura regulatória. Queria ver uma cidade onde os mecanismos de participação pública sejam de fato utilizados para o desenho de projetos e políticas públicas. Se isso de fato acontecer nos próximos anos ou décadas, certamente teremos uma São Paulo melhor para todos.
A São Paulo dos sonhos é possível, mas levará algumas gerações, e precisa ser construída com perseverança por todos nós.