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Nexo jornal

23 de março  de 2019

Philip Yang

O 'incesto' pode ser evitado se a administração pública estiver capacitada a analisar os estudos e projetos recebidos do mercado ou da sociedade

Como podemos ficar livres das práticas de corrupção que unem governos e diferentes setores da infraestrutura? Seremos capazes de criar um novo modelo que esteja imune a práticas ilícitas que marcaram a construção de obras públicas no país?

Infraestrutura e corrupção sempre avançaram de mãos dadas, não só no Brasil, mas também na grande maioria dos países do mundo. No caso brasileiro, as raízes históricas e sociológicas do clientelismo que uniu o Estado e provedores de serviços são profundas e conhecidas. Após as ações bem sucedidas como as da Operação Lava Jato - que desvelaram algumas consequências da corrupção e que contemplam mecanismos bastante eficazes de punição a infratores -, resta agora refletir e agir para que, técnica e juridicamente, o Estado brasileiro possa também se habilitar a combater as causas de práticas ilícitas que dominaram as obras de infraestrutura no país.

 

No passado recente, os mecanismos de apuração e repreensão de delitos ex post facto - ou seja, após a ocorrência de ilícito - foram bastante aprimorados, fazendo com que enorme conjunto de irregularidades pudessem ter sido reveladas, e com a imposição de penas importantes sobre os infratores. No entanto, no domínio das ferramentas de prevenção de crimes - ex ante a ocorrência de transgressões -, os avanços foram bem menos significativos. Por quê?

 

Ocorre que, no âmbito da infraestrutura, a relação entre contratante público e contratado privado - entre poder concedente e concessionário - nasce, em muitos casos, de forma incestuosa. A modelagem de qualquer projeto de infraestrutura demanda conhecimento técnico que usualmente não está disponível no âmbito interno da máquina pública, dada a insuficiência de recursos humanos e materiais nas diferentes esferas de governo.

 

Uma das alternativas para se suprir essa lacuna de conhecimento é a contratação pública de profissionais qualificados no mercado. Entretanto, tal contratação, além de onerosa para um Estado depauperado, é dificultada pelo conjunto de regras que disciplinam as compras governamentais, notadamente a Lei 8.666/93, conhecida como Lei de Licitações - legislação que vem sendo aplicada de modo a garantir que fornecedores que oferecem o menor preço, independentemente da qualidade dos bens e serviços a serem providos, sempre vençam tais concorrências. Editais que adotem parâmetros de "capacidade técnica", mais adequados para a seleção de prestadores de serviços técnicos altamente qualificados, são sistematicamente banidos pelos órgãos de controle, dado que a avaliação por "capacidade técnica" pode sempre embutir critérios subjetivos, voltados ao favorecimento deste ou daquele fornecedor.

 

Uma outra alternativa de que o Estado dispõe para realizar a modelagem dos projetos de infraestrutura, e que vem sendo largamente utilizada no Brasil, é a de mobilizar potencial futuro concessionário para a modelagem do projeto de infraestrutura que se deseja construir. Em mecanismo conhecido como PMI, procedimento de manifestação de interesse , previsto na Lei de Concessões (Lei 8.987/95), ou por MIP, Manifestação de Interesse Privado , fundamentado no Decreto nº 8.428, de 2 de abril de 2015, o Estado concede autorização a ente privado para que realize, sem ônus para o governo, a modelagem que definirá em detalhe as diretrizes gerais do projeto em questão. 

 

Há consenso bastante amplo entre especialistas do setor em torno da ideia de que o regime geral de concessões e de parcerias público-privadas, inclusive os procedimentos de manifestação de interesse, é bastante adequado e moderno. Entre as vantagens tidas como benéficas ao interesse público está a transferência para o privado dos custos de estruturação, a celeridade, a interação público-privada mais livre e a incorporação, já na fase de estruturação, de percepções do mercado.

 

No cenário nacional, no entanto, são raríssimos os casos em que projetos de natureza infraestrutural são propostos pela sociedade civil, sem a interveniência de grupos empresariais. Assim, o problema fundamental que sobrevém à adoção de estudos originários de manifestações de interesse é o fato de que os projetos gerados no setor privado tendem a priorizar os parâmetros projetuais que asseguram a reprodução do capital em detrimento das características que favorecem e maximizam o atendimento do interesse público. Ademais, os termos de referências elaborados pelo Estado para as PMIs são em geral muito fracos, sem exigências que atendam o interesse público. Um segundo problema, não menos grave, reside em que, muito frequentemente, o ente privado autorizado a realizar a modelagem é a própria construtora que vencerá, via concorrência, a concessão que ela mesma modelou. Quando isso ocorre, completa-se o ciclo do incesto. Estendendo a metáfora popular, a raposa não apenas cuida do galinheiro; ela própria o constrói.

O que fazer então?

Por mais curioso que possa parecer, o PMI/MPI é, no ordenamento jurídico brasileiro, o único mecanismo formal de que a sociedade dispõe para dialogar com o Estado sobre determinado projeto público. Constitui portanto a única porta de entrada ao governo para a proposição formal de ideias e projetos por parte não apenas do setor privado, mas da sociedade civil como um todo. Portanto, no momento em que se busca aprimorar o marco regulatório da infraestrutura, há que se tomar cuidado para que o bebê não seja jogado junto com a água suja do banho. Será fundamental corrigir rotas a partir não só de erros, mas também de acertos, e assim manter boas práticas que sejam referendadas pelo setor.

 

Ao mesmo tempo, vale sempre lembrar que uma separação clara entre as funções de estruturador privado, de um lado e, de outro, de concessionário, deveria ser uma medida bastante bem vinda. Vedar, no processo de concessão, a participação de agentes que tenham elaborado a sua modelagem, certamente redundaria em mais transparência, menos conflitos de interesse e ambiente concorrencial mais robusto. Tal separação, portanto, poderia estar na ordem do dia.

Seriam essas duas perspectivas - a que prega a separação completa entre estruturador e concessionário e a que sustenta que uma maior integração entre público e privado - irreconciliáveis? Definitivamente não.

 

Uma evolução responsável do marco regulatório brasileiro, de modo a torná-lo menos propenso a incestos, deveria caminhar em ambas as direções. As estruturações oferecidas no marco dos PMIs/MPIs por potenciais futuros concessionários poderiam seguir sendo autorizadas, mas precisarão ser examinadas de forma rigorosa pelo poder público. Por sua vez, o governo precisa dotar-se de ferramentas para adquirir, sempre que necessário, o conhecimento independente para criticar e revisar as modelagens que venham a ser oferecidas pelo mercado.

 

Aliás, o instituto das manifestações de interesse ficou desacreditado nos últimos anos, em grande medida porque o Estado recorreu de forma abusiva ao instrumento, mobilizando o setor privado ao bel prazer, sem ter tido a devida de capacidade de resposta aos projetos apresentados. Tal situação foi agravada em projetos para os quais mais do que um proponente compareceu com modelagens concorrentes. Sem condições de avaliar e comparar diferentes alternativas, muitas vezes o governo simplesmente abandonou o processo deixando dedicados proponentes a ver navios... 

 

Em suma, podemos de fato imaginar um cenário regulatório aprimorado em que o Estado (i) dota-se de efetiva capacidade de avaliar criticamente as propostas oriundas do setor privado, (ii) por meio da contratação no mercado, quando necessário, de conhecimento técnico especializado e independente dos agentes interessados nas concessões em si e (iii) cria um ambiente institucional aberto, formal e transparente para a interação com o setor privado e a sociedade no momento em que se definem as características do projeto.

 

Afinal, o incesto pode ser evitado se a administração pública estiver capacitada a analisar os estudos e projetos recebidos do mercado ou da sociedade, ou mesmo apta a elaborar com certo grau de autonomia os estudos de viabilidade e projetos. Em grande medida, os Tribunais de Contas introduziram um patamar adicional de aprovação de projetos e maior insegurança jurídica ao setor de infraestrutura em função da deficiência da administração direta e do enfraquecimento técnico e político dos Executivos frente aos Legislativos.

 

O momento é oportuno para debates e vigilância cívica. O setor de infraestrutura aparentemente segue em lua de mel com a administração de Jair Bolsonaro, que, por sua vez, busca aprimorar medidas anticorrupção. Completando a paisagem, o Plenário da Câmara vota esta semana uma esperada e necessária proposta de atualização da Lei de Licitações que, ao que tudo indica, não avança tanto quanto deveria no tratamento do tema, ao deixar sob a responsabilidade do construtor a elaboração dos projetos básico e executivo.

 

As infraestruturas constituem espaço extraordinário de expressão do que somos e queremos ser como sociedade. Trata-se de tema fundamental da vida da nação, que não pode ficar sujeito ao sabor de alguns poucos grupos de pressão, não necessariamente preocupados com o interesse coletivo.

 

Philip Yang é fundador do Urbem – Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole.

PHILIP YANG, 56, mestre em administração pública pela Universidade Harvard, é fundador do Urbem (Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole).

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